quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Retalhos








Retalhos são pequenas películas da minha vida, que por alguma razão são projectadas na minha mente. Nostalgia? Claro que não, mas há-de haver uma razão para que essas curtas-metragens e não outras ficassem gravadas.








Sentada num pequeno banco, com os ombros curvados, repetia incessantemente o gesto mecânico do bordar. A agulha empurrada pelo dedal trespassava o linho, arrastando as linhas que matizavam os desenhos estampados no tecido.
Um candeeiro suspenso por uma corda à roldana do teto, descia até quase a altura da cabeça, incidindo a luminosidade sobre o bordado. Ao seu lado, numa cesta de vimes, descansavam negalhos de linhas de várias cores, um paninho vermelho com agulhas espetadas e três aerogramas recebidos nessa manhã.
Como companhia, uma telefonia sintonizada numa emissora que normalmente transmitia música pedida.



Penso que o acto de bordar é congruente com o acto de introspecção, pois enquanto a minha mãe bordava a alteração constante da sua expressão facial exprimia as emoções que lhe iam na mente. Quantas lágrimas caladas por lá passaram, apertos no peito e também momentos de satisfação?

Com um gesto rápido e automatizado a minha mãe arrematou a linha, descansou o bordado no colo e retirou os aerogramas da cesta para reler mais uma vez. Lia em silêncio, esboçou um sorriso e em voz alta leu - a mãe que me desculpe mas a comida aqui é melhor que ai em casa. Olhou para mim como que a justificar: ele quando esteve cá de férias já me tinha dito que na Força Aérea comiam muito bem. Voltou a ler em silêncio, para pouco tempo depois em voz alta e com um ar mais sério – a mãe que diga ao Adriano que estude, pois na tropa quem não estudou é um desgraçado. Nós temos ido de helicóptero retirar feridos e levar abastecimento às tropas que andam no mato e aquilo é uma desgraça.
A minha mãe olhou para mim e disse: ouviste bem!?



Nesse momento na telefonia começou a tocar uma canção, que sempre que a minha mãe ouvia começava a chorar. Era uma canção do conjunto “Oliveira Muge” e que se chamava “ Mãe” ainda me lembro da música e do início da canção que era mais ou menos assim:” Mamãe, tu estás tão longe de mim! Mamãe, sinto que estás a chorar. Não chores a minha ausência, que um dia hei-de voltar”.
Eu como sempre tentava animá-la – a mãe não chore com o que ele diz, não vê que ele está a cantar?....



PS. Escrevo para que quando estas pequenas películas deixarem de passar na minha mente, eu tenha as palavras escritas e assim possa recordar momentos e pessoas que já não existem, mas que eu não quero que algum dia deixem de existir.



Nota: Aerograma era um envelope para correspondência com os militares aquando do período da guerra colonial. Esta correspondência era gratuita e a direcção dos militares era um código chamado SPM ( serviço postal militar)