terça-feira, 17 de junho de 2025

A Ética

 

Na filosofia, ética é o ramo que estuda os valores morais de um grupo ou de um individuo. O ser humano é um ser em constante conflito consigo próprio. Sigmund Freud estudou este fenómeno e dividiu a mente em três elementos: ID, Ego e Superego. O ID é aquilo que nasce connosco e representa o elemento mais primitivo da mente, onde reside o inconsciente e os desejos mais básicos e primitivos. Após o nascimento, começa a desenvolver-se o Ego, que chamados de consciência, aspeto que procura controlar os impulsos do ID de forma a encontrar soluções menos precipitadas, mais realistas e que vão de encontro dos ideais e sejam socialmente aceitáveis. O Superego, é a consciência moral, são as crenças, cultura familiar, componente moral e social da personalidade e age em contraponto com o ID. O Ego, também conhecido como o nosso EU, tenta criar um caminho de equilíbrio entre o ID e o Superego, agindo como “uma pessoa equilibrada”. Conhecemos atitudes éticas que engrandecem a humanidade e outras que pelo contrário envergonham. Passo a citar um caso de ética, ou seja, de um Ego que conseguiu o equilíbrio: Numa corrida de atletismo “corta-mato” realizada em Espanha, Ivan Fernandes, ia em segundo lugar na prova que era liderada pelo campeão olímpico, o queniano Abel Mutai. Quase no final da prova, Mutai que tinha uma grande distância em relação ao segundo classificado, pensando que já tinha cortado a meta parou e, começou a cumprimentar o público. Ivan Fernandes que vinha em segundo lugar, em vez de correr para a meta e ganhar a prova, dirigiu-se a Mutai e gesticulando explicou-lhe que ainda não tinha cortado a meta, o atleta queniano correu os poucos metros que faltavam e venceu. No final da prova os jornalistas perguntaram a Fernandes: porque fizeste isso? E ele respondeu: Isso o quê? Porque deixaste o Abel Mutai ganhar?  Fernandes respondeu: eu não o deixei ganhar, ele ganhou porque foi melhor do que eu. Que mérito é que eu teria se tivesse ganho desta maneira? Se eu estivesse no primeiro lugar do pódio, quando chegasse a casa o que é que eu ia dizer à minha mãe? Falando de ética, esta é uma frase belíssima, porque a nossa mãe é a última pessoa que queremos decepcionar, porque se a pessoa que nos trouxe à vida tiver vergonha de nós, é porque não prestamos. Os problemas morais e éticos são situações que normalmente não envolvem só a pessoa em questão, mas também outras pessoas que podem sofrer consequências das decisões e ações, que muitas vezes até podem afetar uma comunidade inteira. Falta de ética e atitudes que envergonham, são por exemplo: cientistas e governantes que pelo dinheiro fácil, se deixam corromper por grupos organizados com objetivos ou interesses, normalmente nefastos para a humanidade. Escondem estudos que provam os malefícios provocados nas pessoas e no planeta por certas indústrias, e não satisfeitos, em alguns casos, ainda ajudam a promover os respetivos produtos. Eticamente falando, estes corruptores e corrompidos, são as tais pessoas que não podem contar à mãe os seus êxitos, pois ela poderia sentir vergonha de os ter parido.

Adriano Gonçalves

sexta-feira, 13 de junho de 2025

O Mistério


 Falar sobre o mistério da criação e a origem do universo é uma grande ousadia. A curiosidade sobre o início de tudo e a razão da nossa existência é ancestral. É claro que são perguntas irrespondíveis, embora religiosos e cientistas teimem em dar respostas. O clérigo do alto do púlpito e de bíblia na mão, brota sapiência explicando aos fiéis como Deus criou o mundo em seis dias: “No princípio Deus criou o céu e a terra, depois criou a luz e viu que a luz era boa e separou a luz das trevas e chamou dia à luz e à noite trevas”. Fala de como se processou a criação até ao final do sexto dia e também diz que ao sétimo dia Deus descansou. Desse púlpito ecoam longos sermões, onde se explica o que é que o criador pretende da criatura e também se fala do fim do mundo, onde haverá um julgamento em que os bons herdarão uma vida eterna plena de felicidade e os maus serão deitados num lago que arde com fogo e enxofre. O cientista tão bom palestrante como o clérigo, embora sem bíblia, mas com PowerPoint, emana a sua sabedoria pelos auditórios. Para ele, o universo em vez dos seis dias do clérigo, levou biliões de anos a ser criado. Há 13,7 biliões de anos existia um ponto com uma concentração inimaginável de energia, esse ponto explodiu (Big Bang) e deu origem ao universo. Formaram-se as galáxias, as estrelas, os planetas e as luas. O nosso planeta teve origem há cerca de 4,6 biliões de anos. Nele surgiram as moléculas precursoras da vida que se desenvolveram no fundo mar em regiões de água aquecida pela lava de erupções vulcânicas. Ao longo de milhões de anos essas moléculas foram-se desenvolvendo transformaram-se em células e deram origem às várias formas de vida que hoje conhecemos. Umas ficaram no mar e nasceram-lhes barbatanas, outras decidiram voar e nasceram asas, a quem quis ficar pela terra apareceram pernas. Ao contrário do clérigo, para o cientista não haverá final feliz para quem é bom, a galáxia onde vivemos chamada Via láctea, daqui a 4,5 milhões de anos desaparecerá ao colidir com outra galáxia chamada de Andrómeda. Como dizia Ariano Suassuna “é preciso de ter mais fé para acreditar na história das moléculas do que para acreditar na de Adão e Eva”. É claro que clérigos e cientistas não sabem nada sobre como tudo aconteceu e a razão porque existimos. Os cientistas não dizem como é que se criou essa bola que depois explodiu, nem os clérigos dizem o que é que Deus fazia antes de criar o Universo. Também temos a teoria evolucionista que diz que o homem, os chimpanzés e gorilas proveem de um antepassado comum que viveu há mais de seis milhões de anos em algum lugar da Africa. A diferença intelectual do humano para qualquer outra espécie é abismal, e citando novamente Ariano “eu nem falo na Nona Sifónia nem na Divina Comédia para não ofender os macacos”. Não simpatizo com religiões, mas acredito na espiritualidade. Viver sem Deus para mim seria insuportável. Existem fenómenos paranormais como caso de reencarnação das irmãs gêmeas Pollock, estudados pela ciência, e outras situações que me fazem acreditar que somos muito mais que um simples aglomerado de átomos. Ao que tudo criou, chamo Energia Criadora, evito chamar Deus, para não ser confundido com os Deuses Gregos, Egípcios e por aí fora. Não faço questão de saber como tudo surgiu, isso para mim é um mistério. Tento viver o milagre da vida o melhor possível, e todos os dias dou graças a essa Energia Criadora, que me fez nascer nesta bela terra e à boa vida que tem proporcionado.

Adriano Gonçalves

terça-feira, 10 de junho de 2025

Qual é o legado que iremos deixar ?


 Uma dissertação feita por um conhecido filósofo brasileiro, sobre o percurso de vida de um ser humano e o legado que deixa para as gerações vindouras, serviu de mote para este artigo. Nessa oratória o filósofo cita dados fornecidos pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, onde a média de consumo diário de sólidos, líquidos e gasosos por parte do um ser humano que é de 1,5Kg. Fazendo algumas contas, quem tiver o privilégio de viver o que a estatística diz sobre a esperança de vida em Portugal, consumirá durante a sua vida cerca de 45 toneladas sólidos, líquidos e gasosos, mas, como o ser humano também é um animal excretor, após a sua morte deixará atrás de si cerca de 45 toneladas de excrementos. A questão que se coloca é: além do consumo de recursos do planeta e das imensas toneladas de excrementos que depositamos, o que é que fizemos de útil durante o nosso tempo de vida? Ou será que a nossa vida foi fútil, banal e inútil. Qual é o sentido da vida? Poderá ser simplesmente aperfeiçoarmos mecanismos de sobrevivência, vivendo da melhor forma possível, mas isso é o que também fazem os chamados animais irracionais. O Ser Humano teve a sorte, ou o azar, de possuir algo a que chamamos de consciência, devido a isso, só sobreviver vivendo bem sem olhar a meios, não chega. A nossa mente acaba sempre por nos questionar sobre a razão por que existimos. Embora a nossa existência seja involuntária, simplesmente existimos, pois, a mesma dependeu mais da vontade dos nossos progenitores do que de nós, algo nos impele a escolher um propósito que dê um significado a essa existência. Podemos pensar que a vida é uma festa e que estamos cá só para nos divertirmos, que tudo acaba com a nossa morte e, como dizia o antigo slogan a vida é: “sexo, drogas e rock and rol”. Também podemos acreditar, na reencarnação, na ressurreição, acreditar que a vida é uma escola para o nosso desenvolvimento espiritual, que é se relacionar com a realidade de acordo com o que a realidade é, que é ajudar o mundo à nossa volta, desejar a felicidade do outro e sentir que a felicidade do outro é importante para nós. O sentido da vida é um campo muito vasto a explorar, as religiões, correntes filosóficas e políticas, grupos ateístas, dão várias perspetivas sobre o assunto e arrastam multidões para os seus objetivos coletivos. Há quem acredite que o objetivo da vida é a felicidade e que essa felicidade não é encontrada em bens materiais, nem nas outras pessoas, depende única e exclusivamente de um bem-estar interior e de uma ligação do nosso interior à energia criadora de tudo o que existe. Muitos são aqueles que têm contribuído para a existência de um mundo melhor, seja através de descobertas científicas, ou simplesmente prestando auxílio a alguém que precise de ajuda. Independentemente daquilo em que se acredite o importante é que a nossa passagem por este planeta não tenha só servido para consumir alguns dos seus recursos e depositar algumas toneladas de excrementos.

Adriano Gonçalves

terça-feira, 3 de junho de 2025

Poesia


“A Criança de fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim a ser quem sou; mas hoje, vendo que o que sou é nada, Quero ir buscar quem fui onde ficou”.

Fernando Pessoa

 

 Escrever sobre poesia, e sobre a crença que um dia o Mundo será um lugar de paz, amor e fraternidade, conhecendo o percurso conflituoso da humanidade, até parece ironia. Santo Agostinho, dizia que o mal não tinha origem em si mesmo, o que existia era a ausência de bem, e à ausência de bem, deu-se o nome de mal. Eu acredito na transformação gradual da humanidade, até ao ponto em que tudo e todos, um dia viverão em harmonia. Acredito que a humanidade evoluirá em conhecimento, de tal maneira que implementará no mundo uma forma de vida, onde a ausência de bem será insignificante. Acreditando nestes pressupostos, não poderei desassociar do caminho a percorrer, a filosofia, a democracia e a poesia. A filosofia porque é a busca incessante da sabedoria, a democracia porque permite o debate livre das ideias, a poesia, que por ser a voz da alma e aquela que melhor exprime o sentimento humano. O Poeta é um sonhador, um idealista, um criativo. Agostinho da Silva dizia: “todo o homem nasce poeta e deveria viver de tal maneira e proceder de tal forma que um dia quando morresse, se pudesse dizer: morreu um poema”. A poesia brota do âmago e expressa os sentimentos, vai a lugares nunca vistos, mergulha no irreal e torna-o realidade. O pensamento poético é uma criação divina, que usa o poeta para se manifestar. A poesia não deve ser reprimida nem envergonhada. Como escreveu Ary dos Santos: “Serei tudo o que disserem! Poeta castrado, não!”. O que é ser poeta? Para F. Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente”. Para F.B. Espanca:” Ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens”. Ser poeta é viver sendo aquilo que se quer ser, é lembrar aos homens que todos são uma exceção, que não há alguém no mundo que seja igual, nem física ,nem emocionalmente, e que tudo deveria ser uma exceção adaptada à excecionalidade que cada ser é. Ser poeta é lembrar aos homens que todos podem ser felizes, cada um fazendo aquilo que mais gosta, que o amor é capaz de acabar com qualquer tipo de mal. Ser poeta é acreditar na “Ilha dos amores “de Camões, no “Quinto Império” de Vieira, em Isaías 11:6-9 onde se pode ler que a paz se estende para toda a terra, sem conflitos nem maldade, na “ Sétima idade” de Fernão Lopes. Ser poeta é ensinar aos homens” A Pedra Filosofal” de Gedeão “…o sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida, como outra coisa qualquer ..… o sonho comanda a vida…”. Todo o homem nasce poeta, mas a maior parte está hipnotizada por um género de encantador de serpentes, que os mantém amordaçados, uns com o olhar fixo na sobrevivência, outros com o olhar fixo na gula e na luxúria. Mas o pensamento poético um dia irá sobrepor-se a tudo e conduzirá o homem à fraternidade. P. Neruda escreveu: “… quero viver num mundo em que os seres sejam simplesmente humanos, sem mais títulos além desse. Sem trazer na cabeça uma regra, uma palavra rígida, um rótulo.” Eu sei que sou um ser quimérico e tal qual C. Lispector “Não quero a terrível limitação do que vive apenas do que é possível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada”. Ou como E. Galeano explicou a utopia, dizendo que ela estava lá no horizonte e, que sempre que caminhava em sua direção ela afastava-se, ele continuava a caminhar em sua direção e ela sempre se afastando, acaba concluindo: A utopia serve para isso mesmo, para eu não deixar de caminhar. Sonhemos sempre e sejamos o poema para que fomos criados.

Adriano Gonçalves 

quarta-feira, 30 de abril de 2025

1º Princípio do Hermetismo - O Mentalismo


 O Hermetismo, é uma doutrina filosófica e isotérica e tem por base sete princípios, que quando bem interpretados podem mudar o sentido da nossa vida. O seu primeiro Princípio é o Mentalismo, que diz:” O Todo é Mente o Universo é Mental”.  Ou seja, tudo ocorre no plano mental, e só depois no plano físico. Este princípio, defende que tudo existe dentro de uma grande Mente que é o Todo. Por detrás de tudo o que existe há sempre um pensamento criador. Todos os objetos materiais que conhecemos, antes de existirem foram pensados. O Mundo que vivemos é a concretização de pensamentos, uma simples folha de papel, um lápis, um carro, seja o que for, não existe sem ter passado primeiro por um pensamento. A ciência descobriu que existem umas partículas indivisíveis a que deu o nome de fundamentais ou elementares, que são tipo uns “tijolos” que constroem tudo o que há no Universo, as estrelas, planetas, células, átomos, a própria luz e nós mesmos, tudo é construído a partir destas partículas. Ou seja, nós somos formados com a mesma base de matéria de tudo o que existe no universo. A formação do ser humano, visto de forma muito simplicista, podemos dizer que essas partículas elementares formam átomos, que por sua vez formam moléculas, e essas moléculas formam os tecidos e os órgãos que constroem aquilo que somos. Mas, aqui acaba a ciência de tudo o que é físico, visível e mensurável nos laboratórios, e entramos na área do misticismo. Eu, recuso-me a ser simplesmente um aglomerado de átomos e moléculas, com um único propósito que é o da sobrevivência e perpetuação da espécie, ou citando F. Pessoa, simplesmente “um cadáver adiado que procria”. Creio que somos seres espirituais, habitando um mundo físico, fazendo parte de um plano superior. O que ensina o Mentalismo? Ensina que a matéria está submissa à mente e não a mente à matéria. A nossa vida, a nossa realidade, é puro pensamento, o que nós concretizamos na nossa vida é proveniente dos pensamentos que conseguimos realizar. Somos o que pensamos, o que somos surge com os nossos pensamentos e com os nossos pensamentos fazemos o nosso Mundo. Até o facto de amamos alguém, o que amamos é o pensamento que fazemos da pessoa, pois se deixarmos de gostar dessa pessoa e até a odiarmos, a pessoa continua a ser a mesma, o que mudou foi o pensamento que fazíamos dela. Platão na Teoria das Ideias diz: “Para que exista algo manifesto na realidade, algo físico, é preciso que primeiro tenha sido planeado (…)”. Nós somos o resultado de uma energia criadora e informação atuando no plano físico. O princípio do Mentalismo, diz-nos que tudo se inicia na mente, ensina-nos a importância de criarmos um ambiente mental positivo. William James o pai da psicologia moderna tinha uma frase que dizia: “Um passarinho não canta porque está feliz, ele está feliz porque canta” Marco Aurélio um dos maiores do Estoicismo, disse: “As coisas que pensamos determinam a qualidade da nossa mente, a nossa alma assume a cor dos nossos pensamentos”.  F. Pessoa escreveu “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” .É claro que pensamentos negativos brotam instintivamente na nossa mente, mas se imaginarmos a nossa mente como um jardim e os pensamentos negativos como as ervas daninhas, temos de fazer o que fazemos no jardim, arrancar as ervas daninhas antes que sufoquem as flores que tanto gostamos Ao acordar criarmos uma predisposição positiva, dizermos: hoje vou cumprir com os meus objetivos, hoje vou me sentir feliz, não quer dizer que por pensarmos  assim que tudo vai correr bem, por essa razão, também é importante estarmos preparados mentalmente para ultrapassar uma qualquer vicissitude que possa aparecer e criarmos uma mente resiliente . O Mentalismo ensina que todos fazemos parte da mesma Mente Criadora e somos uma consciência se experienciando na busca de um desenvolvimento espiritual. Tudo é frequência, energia e vibração, somos seres espirituais habitando um mundo físico. A nossa forma de pensar influi positiva ou negativamente a nossa saúde, a forma como vivemos, a relação com as outras pessoas, com a natureza e com os outros seres sencientes.


Adriano Gonçalves

segunda-feira, 31 de março de 2025

Memórias 1: A SOLIDÃO EXISTE, EU JÁ A VI

Do tempo em que os envelopes, carregando cartas, fotos e postais, eram o meio de comunicação mais utilizado entre as pessoas separadas por longas distâncias, guardo com especial carinho uma foto enviada pelo meu pai à minha mãe, com a seguinte inscrição no verso:” ofereço esta foto à minha querida noiva, em prova de eterna amizade e como lembrança de um ano e meio de ausência. Lisboa 26 de setembro de 1943.Teu estimado noivo Álvaro Gonçalves”. Olhando a foto, nota-se o quanto ele e o fotografo capricharam para o momento. O nó da gravata exemplarmente centrado (aliás, como foi sempre seu apanágio), bigode e cabelo aparados ao milímetro, o rigor da indumentária, com uma ligeira subida da manga esquerda para dar visibilidade ao relógio. Com um rosto bonito, a foto a preto e branco, mais parecendo um retrato em sépia, não deixa ver o azul-claro dos seus olhos, mas dá-lhe um ar de galã vintage de Hollywood. O meu pai nascido a 31 de março de 1921na ilha da Madeira, tinha à data 22 anos, e encontrava-se a prestar serviço militar em Lisboa. Era o período da segunda grande guerra, e embora Portugal não tivesse uma participação ativa na guerra, o país encontrava-se em prevenção militar. Dezoito anos depois do meu pai ter enviado esta foto à minha mãe, nasci eu. Fui o terceiro de três filhos. O primeiro morreu em bebé, supostamente devido a uma queda, que não foi informada pela cuidadora (talvez por pensar que não era grave), e o segundo, era quase treze anos mais velho do que eu. A razão para eu ter nascido e segundo os meus pais, foi que a minha mãe com 37 anos e o meu pai com 40, quiseram ter mais um filho para que no avançar da idade lhes fizesse companhia. A ideia do meu pai desde o nascimento do primeiro filho, era ter uma filha, pois segundo ele, uma filha era muito mais amiga dos pais do que um filho. Nós temos a linha que tece a vida, mas como não controlamos a agulha, nasci eu, para a deceção do meu pai, mais um menino. Tive um nascimento atribulado e uma primeira infância de demasiada rebeldia, para não utilizar outros adjetivos mais fortes. Os meus pais nunca se esqueciam de me lembrar a razão pela qual eu tinha nascido; fazer-lhes companhia na velhice. A minha mãe costumava chamar-me de: “a minha companhia”. O meu pai tinha horror a lares da terceira idade, de vez em quando perguntava-me: Quando eu e a tua mãe formos velhinhos, não nos vai meter num lar de idosos?  Ao que eu respondia sempre: é claro que não. Promessa essa, que pelas circunstâncias da vida não consegui cumprir com o meu pai. Com a minha mãe, que morreu alguns anos antes do meu pai ter falecido, consegui cumprir a promessa, sendo sua companhia até o dia da sua morte. O meu pai nunca foi uma pessoa de demonstrar os seus sentimentos, pelo que nunca vou saber o quanto ele gostava de mim. O meu relacionamento com o meu pai foi mais ou menos isto: primeiro tinha medo dele, depois passei a ter respeito, a seguir comecei a admirá-lo e acabei amando este homem, que tanto fez por mim. Fomos colegas trabalho, onde ele era o meu chefe, fato esse, que me exigia o máximo de dedicação, para não parecer ser privilegiado pela situação. Habituei-me a ver o meu pai um homem forte e cheio de energia, talvez por isso, custou-me muito ver o lento declínio da sua vida. Completamente quebrado, dei-lhe banho, mudei-lhe fraldas, algumas vezes dei-lhe comer na boca, quase que passou de meu pai a meu filho. Depois, aconteceu o inevitável, a entrada num lar da terceira idade. No princípio correu da melhor forma, o lar era excelente, ele fez uma boa recuperação, tornando-se quase autónomo nas suas atividades básicas. A partir de certa altura, notei que começou a ficar desmotivado, surgiram alguns problemas de saúde e depois a morte. Um dia, numa das minhas visitas ao lar, encontrei o meu pai diferente. Quanta tristeza havia nele! O azul brilhante dos seus olhos, tornara-se baço. Tinha um olhar fixo num ponto longínquo, que parecia desligar a mente do presente, para poder calcorrear toda a história de uma vida passada. Nesse dia, vi a solidão nos olhos do meu pai. Eu sabia que a solidão existia, não fazia bem a ideia do que era, nunca lhe tinha prestado a devida atenção. Mas, quando vi a solidão nos olhos do meu pai, não sei como explicar, só sei que nunca vou esquecer essa imagem. Senti uma mágoa enorme, comecei a falhar-lhe do passado, se ele se lembrava como é que fazia para eu adormecer, do presépio que tínhamos construído juntos e veio-me as lágrimas aos olhos. Ele olhou para mim e disse-me: “não chores porque assim eu também acabo por chorar”. A nossa conversa acabou com ele a dizer-me “tudo passa”. Sim, eu vi a solidão nos olhos do meu pai, vi uns olhos que não encontravam um sentido para viver. Fiquei com medo, um medo que me persegue, o medo da solidão. Shakespeare num dos seus poemas escreveu “Eis o que torna o amor mais forte: Amar quem está tão próximo da morte”. Escrevo este texto, porque sei que o esquecimento é o destino mais previsível de qualquer memória e a melhor forma de isso não acontecer é utilizando a escrita. Assim fica o registo, para nunca me esquecer que a solidão existe, e uma forma de expiação, por não ter conseguido cumprir a promessa que desde muito pequeno tinha feito ao meu pai” nunca o enviar para um lar de idosos”.. A terminar, uma frase atribuída a Raquel Queiróz “A gente nasce e morre só, e talvez por isso mesmo é que se precisa de viver acompanhado”.

Adriano Gonçalves