terça-feira, 9 de março de 2010

A solidão existe. Eu já a vi

Esta foto tem escrito no reverso " ofereço esta fotografia à minha querida noiva em prova de eterna amizade e como lembrança de um ano e meio de ausência. Lisboa 26 de Setembro de 1943. Teu estimado noivo Álvaro Gonçalves" Esta foto do meu pai, a preto e branco, não permite ver o azul claro dos seus olhos.Ele nesta altura tinha 22 anos, estava a prestar serviço militar e tinha sido deslocado para Lisboa. Pois embora Portugal não partipasse na Segunda grande guerra , o País estava em prevenção militar.
18 anos depois do meu pai ter enviado esta foto à minha mãe nasci eu. Tive uma infância algo atribulada devido a uma rebeldia excessiva. Os meus pais sempre me fizeram lembrar que eu tinha sido concebido com o objectivo de fazer-lhes companhia na velhice.
O meu pai que tinha horror a lares da terceira idade, fazia-me prometer que quando ele e a minha mãe fossem velhinhos eu nunca os colocaria num lar desses. Promessas que pelas circunstâncias da vida não consegui cumprir na totalidade.
O meu pai nunca foi uma pessoa de demonstrar os seus sentimentos, pelo que nunca vou saber quanto é que ele gostava de mim.
O meu relacionamento com ele, foi mais ou menos isto: primeiro tinha medo dele, depois passei a ter respeito, a seguir comecei a admirá-lo e acabei amando este homem, que tanto fez por mim. Habituei-me a ver no meu pai um homem forte e cheio de energia, e custou-me muito ver a sua fase final da vida, completamente quebrado, dei-lhe banho, mudei-lhe fraldas, algumas vezes dei-lhe comer na boca, quase que passou de meu pai a meu filho. Depois, aconteceu a entrada num lar da terceira idade.
No princípio correu da melhor forma, o Lar era excelente, ele fez uma boa recuperação a nível físico, tornando-se quase autónomo nas suas actividades básicas. A partir de certa altura notei que começou a ficar desmotivado, surgiram alguns problemas de saúde e depois o inevitável, a morte.
Um dia, numa das minha visitas periódicas ao Lar, encontrei o meu pai, diferente. Quanta tristeza havia nele! O azul brilhante dos seus olhos, tornara-se baço. Tinha o olhar fixo num ponto longínquo, que parecia desligar a mente do presente, para que esta pudesse calcorrear toda a história de uma vida passada.
Nesse dia, eu vi nos olhos do meu pai a solidão. Eu sabia que a solidão existia, mas não fazia ideia do que era, nunca lhe tinha prestado atenção, não lhe dava grande relevância. Mas, nesse dia, o dia em que vi a solidão nos olhos do meu pai, não sei como explicar! só sei que nunca vou esquecer essa imagem. Senti uma mágoa enorme, e comecei a falar-lhe no passado, se ele se lembrava como é que fazia para eu adormecer, do presépio que tínhamos construído juntos, etc. Veio-me as lágrimas aos olhos, e ele disse, não chores, porque assim eu também acabo por chorar. A nossa conversa acabou com ele a dizer-me com uma voz amargurada “ tudo passa”
Sim, eu vi o rosto da solidão nos olhos do meu pai, vi uns olhos que não encontravam um sentido para viver. Mas até hoje, nunca consegui encontrar palavras para descrever o que vi nos olhos do meu pai, A solidão. Só sei que fiquei com medo, um medo que me persegue, o medo da solidão.
Escrevi este texto, para nunca esquecer- me que a solidão existe, mas também como forma de expiação, por não ter conseguido cumprir a promessa que desde muito pequeno tinha feito a meu pai:" nunca o enviar para um Lar de idosos". A terminar uma frase que li algures “ A gente nasce e morre só. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado”( Rachel de Queiroz)

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentários...